terça-feira, outubro 31, 2006

Amor e globalização em Hong Kong


Este post aborda um dos grandes filmes realizados no continente asiático na última década. Não se deixe impressionar pelo horroroso título internacional: Conrades: Almost a Love Story (Tian mi mi, Peter Chan, Hong Kong, 1996) é, ao mesmo tempo, uma das primeiras obras cinematográficas a tratar com maior profundidade o fenômeno da globalização e uma bela, conturbada e nada piegas história de amor. Foi concebido, ainda, como ode a uma certa Hong Kong – cosmopolita, liberal, festiva – que, prestes a ser incorporada pela China (em 1997) estava sob risco, de acordo com a percepção vigente à época, de desaparecer.

O filme começa em 1986, com XiaoJun Lin (Leon Lai) chegando a Hong Kong. “Caipira” do interior da China, deslumbrado pela metrópole, ele vivencia o preconceito contra os chineses – sobretudo contra aqueles que, como ele, só falam mandarim [o idioma predominante em Hong Kong é cantonês]. Sobrevive em subempregos, escrevendo cartas para a namorada que deixou no continente e morando no bordel de sua tia, uma velha prostituta que afirma ter sido amante de Willian Holden.

A menção ao astro de Sunset Boulevard (Billy Wilder, USA, 1950) é o primeiro de uma série de referenciais internacionais que perpassam a narrativa. Numa lanchonete da rede McDonalds, XiaJun Lin encontra Leon Lai (Maggie Cheung, grande atriz e uma das divas do cinema chinês), uma garota arrivista que, visando lucro pessoal, o convence a estudar ingês: “Aprendendo cantonês você encontra emprego em Hong Kong; aprendendo inglês você pode trabalhar em qualquer lugar do mundo.” Ao vocalizar uma das idéias-chave da então nova ordem econômica mundial, o filme dá sentido às referências internacionais, evidenciando a globalização como um de seus temas-chave. Expressão da nova lógica do trabalho, as personagens se deslocam, ao longo da narrativa, entre China, Taiwan, Hong Kong e Nova Iorque. O caráter multinacional da narrativa é enfatizado, ainda, através de menções ao Japão, Oriente Médio e Austrália (na figura do professor de inglês vivido por Chistopher Doyle, diretor de fotografia de obras-primas de Wong Kar-Wai, cujo ortodoxo método de ensino inclui frases como Jump, you son of a bitch, jump!).

Contrapostos à imagem da velha bicicleta que XiaoJun Li usa para trabalhar, são enfatizados símbolos da então nova cultura global: comunicação através de pagers, a liga de basquete NBA, cartões de crédito. É através de uma máquina ATM, com os protagonistas vistos a partir de uma câmera subjetiva no interior do caixa automático, que são descritos os altos e baixos financeiros de Lin e Lai – como quando acabam vítimas da volatilidade da nova economia global por ocasião da crise cambial que abalou a Ásia no período.

Numa seqüência-síntese da posição que ocupam nessa nova ordem, os dois são vistos a partir do lado de fora de uma janela do McDonalds, como se estivessem em uma vitrine, falidos após um fracassado investimento comercial. Ela, no canto esquerdo do quadro, limpa o vidro enquanto ele, no canto oposto, tenta consolá-la, tendo ao fundo, em meo aos dois, uma imagem fora de foco do palhaço Ronald McDonald.

O companheirismo nos momentos de baixa aproxima ainda mais os dois e os leva ao envolvimento amoroso. A partir do momento em que a relação se consome, a trama passa a avançar em sucessivas elipses (1986, 1990, 1993, 1995), a fluência narrativa valorizada por um notável domínio da mise en scène, nostalgia e paixão ilustrados por um padrão cromático em que o predominante azul cobalto é por vezes oposto ao vermelho sangue, e uma decupagem que inclui utilização primorosa do close-up, produzindo, entre outros resultados admiráveis, um dos beijos mais bem filmados da história do cinema

O agravamento da situação econômica da garota (que a leva a trabalhar como “massagista”), o casamento de Liu com sua namorada interiorana e o envolvimento de Lai com um gângster da Yakuza (que faz uma tatuagem do Mickey Mouse nas costas para provar seu amor por ela) provocam longas separações e intensos reencontros, até o grand finale em Nova Iorque, procedido por uma coda em forma de flashback que obriga o espectador a repensar o filme de outra perspectiva.

Nenhum comentário: