sábado, novembro 11, 2006

O fenômeno Shah Rukh Khan


Produtos do ramo mais bem-sucedido do cinema indiano em termos comerciais, os filmes abrigados sob o rótulo “Bolywood”, no mais das vezes produções de grande orçamento, obedecem a um sistema industrial altamente profissionalizado. Dos roteiristas aos técnicos no estúdio, da figurinista ao diretor de arte responsável pelos multicoloridos padrões cromáticos, dos coreógrafos aos cantores que dublam os astros nos diversos números musicais, todo o sistema produtivo trabalha em série e de modo praticamente ininterrupto, a realização de um filme sucedendo a de outro.

A cereja do bolo desse esquema é, claro, o star-system indiano, já que no país, ainda mais do que em Hollywood, é o elenco – sobretudo o protagonista masculino – o principal chamariz de público para os filmes.

A atual estrela inconteste das telas indianas é o ator Shah Rukh Khan (foto), 41 anos, que sucedeu o grande ídolo dos anos 70 Amitabh Bachchan (acerca do qual publicaremos um post em breve). Essa mudança significou uma revolução nos padrões estilísticos e temáticos concernentes ao protagonista.

O título com o qual a imprensa ocidental freqüentemente se refere a Shah Rukh Khan – “O Tom Cruise indiano” – está longe de dar conta do complexo fenômeno que ele representa. Para começar, ao contrário do atorzinho hollywoodiano, ele não pertence à classe social/etnia dominante, e sim ao islamismo, identificado na Índia com as camadas mais pobres da população. O fato de ter atingido o topo do estrelato a partir dessa origem, subvertendo a tradição em um país rigidamente estratificado em termos sócio-econômicos, fez dele um modelo para vastos segmentos da juventude indiana.

Um dos traços distintivos de seu estilo de interpretação – e talvez o grande segredo de seu sucesso –, é a entonação auto-irônica com que dota suas personagens, meta-referência que acrescenta inteligência e ironia às suas performances. Embora não seja bom dançarino - requisito importante para um astro indiano – Shah Rukh Khan tem uma expressão corporal ágil e uma sensualidade natural, que, com o auxílio do humor, o permitem desvencilhar-se dos números de dança com relativa destreza.

A encarnação do galanteador maroto, brincalhão e doce como um menino, que ao se ver obrigado a "crescer" e enfrentar as adversidades revela-se possuidor de um grande caráter, tornou-se uma espécie de marca registrada dele e um de seus tipos mais marcantes, recorrentes. No últimos anos, seu talento e carisma únicos fizeram dele um fenômeno cult internacional.

Algumas de suas melhores atuações estão em papéis que, ilustrando uma dinâmica social intensificada pela globalização, representa um indiano que foi ganhar a vida no exterior, e agora volta para o país e enfrenta o choque do reencontro com suas raízes – tema de Pardes (Subhash Ghai, 1997) e do excelente We, the People (Swades, Ashutosh Gowariker, 2004). Para entender o fenômeno Bollywood é preciso decifrar o fenônemo Shah Rukh Khan.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Comédia Camp Alucinada


Imagine uma comédia besteirol que promove um cruzamento de Star Wars e A Noite dos Mortos-Vivos e inclui colegiais em uniforme enfentando, a machadadas, um bando de zumbis enlouquecidos. Imaginou? Pois isso é só o começo de Sar Wars (Khun krabii hiiro, Taweewat Whntha, Tailândia, 2004).
O filme, forte candidato a clássico camp, vai se tornando mais e mais hilário ao longo da narrativa, que não se prende a nenhum modelito batido (e tira uma onda com Quentin Tarantino, incluindo de um anime erótico que não tem nada a ver com o resto do filme).
O desempenho dos atores, claro, deixa muito a desejar, mas isso só torna o espetáculo ainda mais hilário - para o que contribui consideravelmente a qualidade dos efeitos especiais (não tanto por serem ruins tecnicamente, mas justamente por aspirarem a um nível alto, ao invés de incorporar a precariedade técnica como estética).
Mas, apesar de todo o lado trash, o que faz de Sar Wars um filme que vale a pena ver é a ousadia visual - bem gráfica - e um roteiro extremamente criativo, que dá de dez em todas as comédias que Hollwood produziu na última década. Pra aqueles dias que você tá afim de morrer de rir.camp

segunda-feira, novembro 06, 2006

Policial Cult Coreano


Filmado em super-16mm e exibido em 35mm (mesmo processo adotado por Walter Salles e Daniela Thomas em Terra Estrangeira (1996), e que produz uma granulação da imagem) o filme coreano The City of Violence (Jjakpae, Seung-wan, 2005) vem se tornando objeto de culto internacional nos últimos meses,
Ao contrário do padrão da maioria dos filmes policiais coreanos contemporâneos, que costumam dosar o ritmo através da contraposição de contemplativos diálogos e vertiginosas seqüencias de ação, o filme filia-se à escola policial dos anos 70: ação constante, humor curto e grosso, diálogos cortantes.
O resultado é um daqueles filmes que fazem a cabeça de Quentin Tarantino e o levam a apresentar ao resto do mundo, como se fosse a maior novidade cinematográfica do planeta, entre outros produtos de inspiração asiática, seqüências de luta plásticas e altamente coreografadas como as de Kill Bill 1 (2003). Mas se o leitor prefere conhecer a categoria das originais, confira aquelas protagonizadas pelo mestre coreano das artes marciais Jeong Du-hong em The City of Violence. São de outro nível.

domingo, novembro 05, 2006

Ichi the Killer


O mais cultuado dos filmes de Miike Takashi, Ichi the Killer (Koroshiya 1, 2001) é uma adaptação – menos violenta, acredite - do mangá homônimo publicado meses antes por Yamamoto Hideo (o desenhista, não o famoso diretor, que aliás participa do filme como ator). Primeira parceria de Miike com o roteirista Satô Sakichi (com quem viria a trabalhar novamente em Gozu (Gokudô kyôfu dai-gekijô: Gozu, 2003)), o filme marca, ao mesmo tempo, o paroxismo de seu estilo visual-narrativo e, ao lado de Audition (Ôdishon, 1999), sua mais elaborada e prenhe de significações criação cinematográfica.

Após a vertiginosa seqüência de abertura – câmera subjetiva de um ciclista pelas ruas de Tóquio, estabelecendo um padrão visual composto de profusão de zooms, planos-seqüência e movimentos acelerados de câmera – o filme mergulha, através de uma narrativa que constantemente avança e recua no tempo, numa trama passada no submundo de gangues e das redes de prostituição.

Através de hipnose, o chefe da yakuza Jijii (Tsukamoto Shinya) implantou memórias no inseguro e masoquista Ichi (Omori Nao) que o fazem assassinar prostitutas do bordel chefiado pela bela Karen (Sun Alien), controlado pelo ramo rival.

Kakihara (Asano Tadanobu, num dos papéis decisivos para sua projeção internacional), um japonês albino que usa um piercing-alfinete em cada canto da boca e tem o rosto coberto de cicatrizes, é um membro da tal ala rival, disposto a vingar a morte de seu chefe, Anjo, que é assassinado ao lado da primeira vítima. A personagem de Asano é introduzida na narrativa, em flashforward, na casa em que ocoreu a matança (encenada com o grafismo típico de Miike, teto respingando sangue, tripas ainda “vivas” se contorcendo pelo chão...).

Na seqüência mais famosa do filme, ele tortura outro membro da organização - que é mantido suspenso por ganchos que perfuram a pele das costas - utilizando-se de agulhas espetadas no rosto e de óleo fervendo... Com as demais cenas de tortura, o sadismo com que são tratadas as prostitutas e as sequências da morte delas – um corte profundo no pescoço que provoca esguichos de sangue -, o filme resulta num espetáculo cinematogáfico de difícil digestão para públicos mais sensíveis.

A trama é freqüentemente mediada por aparatos de vigilância, como circuitos internos de segurança - cujas imagens são “reproduzidas” através de vídeo de baixa definição -, e perpassada por um elaborado desenho de som, em que se destaca a trilha sonora, formada por uma percussão hipnótica acrescida de vocais e por eventuais incursões ao pop/rock japonês.

O filme remete, assim, ao crescente controle social exercido pela tecnologia, e prefigura nosso atual presente histórico, com a tortura incorporada à temática cotidiana (e, a que ponto chegamos, método de interrogatório aprovado em parlamentos de países ditos democráticos). No entanto, enganam-se os que pensam que Miike, através de seu aparente amoralismo, apologiza ou endossa a violência. Ao contrário: a exemplo de Nelson Rodrigues - sempre atacado pela alegada permissividade de suas peças -, o diretor japonês, como vem seguidamente demonstrando sua obra, é um moralista, perplexo ante a conteporaneidade e saudoso de um passado idílico (ver a série DOA). Isso é evidenciado, no filme, pelo fato de que, ao final, o único sobrevivente é o menino Takeshi, testemunha perplexa de toda a sanguinolência e herdeiro daquele presente desesperançado.

sábado, novembro 04, 2006

Western Pós-moderno Tailandês



Pastiche do western e do melodrama (este um gênero central das tradições literárias tailandesas), Tears of the Black Tiger (Fa Talai Jone), dirigido por Wisit Sasanatieng em 2000, foi um grande sucesso de público e crítica no país. O filme conseguiu atrair, ao mesmo tempo, o público fiel às comédias populares e uma audiência com um gosto cinematográfico mais cosmopolita.

As razões para esse duplo sucesso talvez posam ser explicadas pelo fato de o filme “funcionar” muito bem como uma comédia popular – com direito à adrenalina do western e às lágrimas do melodrama - e, ao mesmo tempo, parodiar esses gêneros e a própria narativa.

A história, passada no final do século XIX, diz respeito a um triângulo amoroso entre uma bela donzela, o oficial a quem está prometida, e o bandido por quem, claro, está apaixonada. A direção de arte, detalhista, é um espetáculo à parte, registrado por uma fotografia marcada por baixas luzes e saturação cromática, que acentua a ênfase dramática. Os desempenho dos atores, infelizmente, não está à altura do padrão técnico-narrativo do filme, que foi selecionado para o Festival de Cannes em 2001.

sexta-feira, novembro 03, 2006

O Arrebatador Cinema da Índia



A imagem do cinema indiano no Ocidente esteve associada, por um longo período, à figura de Satyajit Ray (1921-1992) e, nas últimos décadas, aos filmes produzidos por “Bollywood” (o B vem de Bombay, cidade que desde 1995 passou a chamar-se oficialmente Mumbaim, e único centro produtor de cinema no mundo a superar Hollywood, ente outros quesitos, em número de produções/ano).

Mas, com todo respeito a um dos grandes mestres do cinema e à exuberância multicolorida de “Bollywood”, o cinema indiano vai muito além dessas duas imagens.

O país contra com três grandes centros produtores – Mumbaim, Calcutá e Madras –, que lançam, anualmente, uma média de quase mil filmes. A maioria é falada em Hindi, mas há uma considerável produção em Tamil, Telugu e em Malayalam, e algumas dezenas de títulos falados em Bengali, Kannada, Gurajati e em Marathi. Quase todos os 21 idiomas/dialetos falados no país são contemplados com a produção de ao menos um filme por ano.

Cerca de trinta milhões de indianos vão ao cinema diariamente (aproximadamente 3% da população do país) e, em 2005, 94% das receitas de bilheteria disseram respeito à produção nacional. Além de hegemônico internamente, o cinema indiano tem mercado cativo no sudeste asiático, no Oriente Médio e em boa parte da África. Durante décadas objeto de culto restrito às comunidades indianas no exterior, vive hoje um processo de popularização no Ocidente – fenômeno que mereceu uma extensa reportagem no diário francês Le Monde em agosto último.

A presença marcante da cultura popular indiana – milenar ou contemporânea -, combinada ao volume de produção, gera um cinema extremamente rico em sua diversidade, com uma forte tradição em termos de documentário, duas grandes escolas ficcionais, características regionais distintas e crescente experimentalismo. Vale a pena conhecer melhor essa filmografia vibante, que envolve o espectador, seja através do apelo popular produzido pela mistura de gêneros, canções e cores de sua produção mainstream, pela sinceridade e agudeza dos seus filmes de “temática social”, ou pelo rigor e personalidade de seu “cinema de autor”.

Este blog abordará, ao menos uma vez por semana, esse cinema infelizmente tão pouco divulgado no Brasil.

quinta-feira, novembro 02, 2006

A Dura Vida dos Pixotes Indianos


Um dos clássicos esquecidos do cinema indiano, Boot Polish (Prakash Arora, 1954) retrata a trajetória de um casal de crianças – Belu, com 7 anos e Bhola, com 10 – que se vêem órfãs e são entregues à prostituta Kamala, uma tia que os brutaliza e explora financeiramente.

Estimulados pela carismático John Chacha (visto na parte superior da foto), um escroque que busca em Cristo a força para regenerar-se, eles passam a procurar uma profissão, na tentativa de deixar de pedir esmola (atividade que é classificada pelo filme como moralmente condenável). No entanto, as vertiginosas inversões dramáticas típicas de uma certa tradição cinematográfica indiana imporão um longo e penoso percurso a separá-los da obtenção da dignidade pessoal e do reencontro com o carinho maternal.

Fiel à narrativa clássica, o filme utiliza com economia dramática a movimentação de câmera e vale-se de forma recurrente da música – na trilha ou nos números de dança – para enfatizar o estado de espírito das personagens. Uma das tradições mais fortes do cinema mainstream indiano, a narrativa promove uma mistura de gêneros cinematográficos, a comédia e o melodrama funcionado como pêndulos que asseguram o equilíbrio do drama central.

Passado em Bombaim (atual Mumbaim) e parcialmente filmado em locação, o filme retrata a condição de vida nas favelas da cidade e leva ao limite permitido pelo tipo de espetáculo cinematográfico em questão a ênfase dada à falta de perspectivas sociais das classes desvalidas. A intensidade dramática de seus momentos finais equipara-se à de clássicos do melodrama latino e arranca lágrimas dos espectadores mais sensíveis. Um clássico para ver e rever.

terça-feira, outubro 31, 2006

Amor e globalização em Hong Kong


Este post aborda um dos grandes filmes realizados no continente asiático na última década. Não se deixe impressionar pelo horroroso título internacional: Conrades: Almost a Love Story (Tian mi mi, Peter Chan, Hong Kong, 1996) é, ao mesmo tempo, uma das primeiras obras cinematográficas a tratar com maior profundidade o fenômeno da globalização e uma bela, conturbada e nada piegas história de amor. Foi concebido, ainda, como ode a uma certa Hong Kong – cosmopolita, liberal, festiva – que, prestes a ser incorporada pela China (em 1997) estava sob risco, de acordo com a percepção vigente à época, de desaparecer.

O filme começa em 1986, com XiaoJun Lin (Leon Lai) chegando a Hong Kong. “Caipira” do interior da China, deslumbrado pela metrópole, ele vivencia o preconceito contra os chineses – sobretudo contra aqueles que, como ele, só falam mandarim [o idioma predominante em Hong Kong é cantonês]. Sobrevive em subempregos, escrevendo cartas para a namorada que deixou no continente e morando no bordel de sua tia, uma velha prostituta que afirma ter sido amante de Willian Holden.

A menção ao astro de Sunset Boulevard (Billy Wilder, USA, 1950) é o primeiro de uma série de referenciais internacionais que perpassam a narrativa. Numa lanchonete da rede McDonalds, XiaJun Lin encontra Leon Lai (Maggie Cheung, grande atriz e uma das divas do cinema chinês), uma garota arrivista que, visando lucro pessoal, o convence a estudar ingês: “Aprendendo cantonês você encontra emprego em Hong Kong; aprendendo inglês você pode trabalhar em qualquer lugar do mundo.” Ao vocalizar uma das idéias-chave da então nova ordem econômica mundial, o filme dá sentido às referências internacionais, evidenciando a globalização como um de seus temas-chave. Expressão da nova lógica do trabalho, as personagens se deslocam, ao longo da narrativa, entre China, Taiwan, Hong Kong e Nova Iorque. O caráter multinacional da narrativa é enfatizado, ainda, através de menções ao Japão, Oriente Médio e Austrália (na figura do professor de inglês vivido por Chistopher Doyle, diretor de fotografia de obras-primas de Wong Kar-Wai, cujo ortodoxo método de ensino inclui frases como Jump, you son of a bitch, jump!).

Contrapostos à imagem da velha bicicleta que XiaoJun Li usa para trabalhar, são enfatizados símbolos da então nova cultura global: comunicação através de pagers, a liga de basquete NBA, cartões de crédito. É através de uma máquina ATM, com os protagonistas vistos a partir de uma câmera subjetiva no interior do caixa automático, que são descritos os altos e baixos financeiros de Lin e Lai – como quando acabam vítimas da volatilidade da nova economia global por ocasião da crise cambial que abalou a Ásia no período.

Numa seqüência-síntese da posição que ocupam nessa nova ordem, os dois são vistos a partir do lado de fora de uma janela do McDonalds, como se estivessem em uma vitrine, falidos após um fracassado investimento comercial. Ela, no canto esquerdo do quadro, limpa o vidro enquanto ele, no canto oposto, tenta consolá-la, tendo ao fundo, em meo aos dois, uma imagem fora de foco do palhaço Ronald McDonald.

O companheirismo nos momentos de baixa aproxima ainda mais os dois e os leva ao envolvimento amoroso. A partir do momento em que a relação se consome, a trama passa a avançar em sucessivas elipses (1986, 1990, 1993, 1995), a fluência narrativa valorizada por um notável domínio da mise en scène, nostalgia e paixão ilustrados por um padrão cromático em que o predominante azul cobalto é por vezes oposto ao vermelho sangue, e uma decupagem que inclui utilização primorosa do close-up, produzindo, entre outros resultados admiráveis, um dos beijos mais bem filmados da história do cinema

O agravamento da situação econômica da garota (que a leva a trabalhar como “massagista”), o casamento de Liu com sua namorada interiorana e o envolvimento de Lai com um gângster da Yakuza (que faz uma tatuagem do Mickey Mouse nas costas para provar seu amor por ela) provocam longas separações e intensos reencontros, até o grand finale em Nova Iorque, procedido por uma coda em forma de flashback que obriga o espectador a repensar o filme de outra perspectiva.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Clássico iconoclasta japonês


Clássico cult da nouvelle vague japonesa, Funeral Parade of Roses (Bara no soretsu, Matsumoto Toshio, 1969) mistura psicanálise, Jean Genet, referências pop e sexualidades alternativas para construir uma visão arrasadoramente crítica do impasse vivido pela sociedade japonesa em seu “Maio de 1968”.

Em termos de linguagem narrativa, o filme ousa bastante: inserta imagens de filme-guia, mistura ficção e cenas documentais rodadas no centro de Tóquio, utiliza-se de artes plásticas e de comics, põe balões na boca das personagens como se elas estivessem em uma história em quadrinhos. Tais recursos instauram aquele delicioso frescor iconoclasta tão típico de algumas produções do final dos anos 60, que podemos encontrar nos primeiros filmes do Cinema Marginal Brasileiro e na música dos Mutantes, por exemplo.

À crítica à sociedade de consumo, ao marxismo ortodoxo de parte da esquerda japonesa e ao maoísmo contraproducente da outra parte, alia-se uma ênfase na questão sexual, através da tematização do homossexualismo e do travestismo (o filme vem sendo, nos últimos anos, objeto de debate acadêmico internacional nos chamados Queer Studies).

A trama, se é que podemos falar assim (já que ela é apenas um fio condutor a fazer avançar uma narrativa cujo interesse diverge para os temas tratados nos parágrafos anteriores) gira em torno do triângulo amoroso formado pelo protagonista, um crossdresser atormentado por terríveis lembranças familiares (Peter), seu amante Gureko (Furamenko Umeji), dono do Genet Bar, e a prostituta Leda (Ogasawara Osamu). O embate entre o trio, com momentos dignos de Almodóvar em preto e branco, degenera num banho de sangue com direito a harakiri, numa seqüência que, ao menos para cinéfilos brasileiros, pode remeter ao final de Hittler 3º. Mundo, rodado um ano antes do filme japonês por José Agrippino de Paula.

O Mestre de Taiwan



Um dos grandes mestres em atividade no cinema asiático, Hou Hsiao-hsien produz, desde 1980, um cinema ao mesmo tempo humanista (focado no indivíduo) e político (profundamente ligado à conturbada trajetória histórica de Taiwan).

Assumidamente influenciado pelo cinema japonês clássico - mas com uma marca autoral forte -, os filmes de Hsiao-hsien distinguem-se, do ponto de vista formal, por longos, plásticos planos, por uma cuidadosa composição, que freqüentemente produz uma dupla ou tripla divisão interna do quadro (como na foto) e por movimentos de câmera extremamente econômicos. As freqüentes cenas de jantares tornaram-se características pelo simbolismo e pela dinâmica interna, a milimetricamente controlada movimentação dos atores produzindo um ballet visual pleno de significações.

City of Sadness (Beiqing chenghi, 1989), primeira parte de uma trilogia dedicada à história taiwanesa moderna e certamente seu filme mais cultuado, é um ambicioso painel do país durante os anos de ocupação japonesa (1945-1949). Através da trajetória pessoal dos diversos membros de uma família, o filme produz um mosaico (um tanto à maneira de Novecento de Bertolucci, mas em outro registro), em que a dinâmica das relações entre personagens alude à atmosfera sócio-econômica, num filme profundamente político, mas no qual a política nunca é diretamente mencionada.

Forçado ao exílio no fim dos anos 80, Hsiao-hsien enfrenta dificuldades para obter financiamento para seus filmes em Taiwan. Mas, através de co-produções (principalmente com França e com Japão), o diretor tem conseguido, desde 1993, retomar um ritmo regular de produção, e prepara atualmente seu décimo-oitavo longa, Ballon Rouge (que não chega a ser homônimo do lúdico média metragem francês dos anos 50, já que o filme de Albert Lamorisse chama-se Le Ballon Rouge). Voltaremos a abordar nas próximas semanas, com mais detalhe, o cinema de Hsiao-hsien.

domingo, outubro 29, 2006

Free Web Counter

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O prolífico Miike Takashi

Miike Takashi, o figuraça da foto, é um diretor japonês que, em 15 anos de carreira, dirigiu mais de 50 longas. Sua carreira está diretamente ligada ao desenvolvimento das tecnologias digitais ocorrido nas últimas duas décadas: seus filmes, rodados, em sua maioria, diretamente em vídeo, beneficiaram-se do barateamento dos custos de produção e dublagem, e tornaram-se uma febre na Ásia e no fan-circuit norte-americano.
Extremamente eclético, dirigiu dramas (The Bird people in China, 1998), comédias (The Happiness of the Katakuris, 2001), policiais (Shinjuku Triad Society, 1995) e ficção científica (Dead or Alive: Final, 2002, terceiro e último episódio da série de filmes que o tornou cultuado). As altas doses de violência gráfica, eventualmente mescladas a horror e bizarramente cômicas, formam um traço distintivo em sua cinematografia.
Com Audition (2002) sua carreira ganhou reconhecimento crítico internacional. Os primeiros dois terços do filme, marcados por uma sobriedade e ritmo narrativo atípicos em se tratando de Miike, retratam o cotidiano de um produtor solitário que promove testes de elenco visando achar a mulher dos seus sonhos.
Ela se materializa na figura de Aisami, uma tímida aspirante a atriz (a estonteante Eihi Shiima, na foto). Após uma seqüência com fortes tonalidades sadomasoquistas, cuja extrema violência provocou o esvaziamento de cinemas mundo afora, o filme revela-se um contundente e radical exame da dinâmica das relações de poder que permeiam os relacionamentos afetivo-sexuais.
Apesar de irregular - e, dependendo da sensibilidade da audiência, eventualmente repugnante - vale a pena conhecer a obra de Miike Takashi, que apresenta uma agilidade e uma sensibilidade estética multicultural e contemporânea, com espasmos de grande cinema.
Curiosidade: The City of Lost Souls (2000) inclui um protagonista "brasileiro", na figura do anti-herói Mário (Teah). As aspas dizem respeito ao sofrível portunhol que ele, assim como parte do elenco, quer fazer passar por português...

Tailândia inovando

Dirigido por Pen-ek Ratanuruang em 2003, Last Life in the Universe (Ruang Rak Noi Nid Mahasan) foi saudado em festivais internacionais por confirmar o talento de seu diretor, que vinha de três bem-sucedidas produções, e por trazer um sopro de novidade estético-narrativa através da mescla de elementos tradicionais tailandeses e japoneses em diálogo com tendências do "cinema de arte" internacional.
Estrelado pelo astro indie japonês Tadanobu Asano, o filme, através de sua mescla de "Yakuza movie" e romance, subverte clichês do gênero policial e conta, com delicadeza e inspiradíssima direção de arte, o envolvimento de uma garota borderline amalucada com o que parece, à primeira vista, tratar-se de um intelectual reprimido.
A troca de identidades, somada à participação especial de Miike Takeshi como chefe dos gângsters em busca de vingança, acrescenta toques de comédia à narrativa, que tem como um de seus charmes especiais o fato de os créditos iniciais só aparecem lá pela metade do filme.
Pen-ek Ratanuruang é, ao lado de Oxide Pang e Yongyooth Tongkonthun, um dos principais responsáveis pela retomada do prestígio internacional (e pela penetração no mercado asiático) do cinema tailandês a partir de 1997, ano em que dirigiu o sucesso de público Fun Bar Karaoke (Fun ba karaoke). Voltaremos a falar dele e do cinema tailandês.

Peppermint Candy


Não é apenas na economia que a Coréia, após investimentos maciços em educação e tecnologia, tornou-se um “tigre asiático”. O país é (ou foi, até 2005) um dos dois únicos do mundo não-comunista (o outro é a Índia) em que a produção local suplanta Hollywood em termos de público.
O cinema coreano abrange um diversificado leque de estilos e tamanhos de produção – do filme experimental independente, ao mega-blockbuster (Shiri, dirigido por Kang Je-gyu em 1999, bateu Titanic nas bilheterias locais), passando por um cinema de gênero comercialmente estabelecido e por um considerável número de diretores com visão autoral que produzem o que no Brasil se convencionou chamar de “filme de arte”. Este blog vai procurar comentar com regularidade essa cinematografia tão especial, que tem muito a oferecer ao público e aos cineastas brasileiros (incluindo, neste caso, um modelo de fianciamento da atividade que merece ser estudado com atenção).
Vamos começar nossa viagem ao cinema coreano com Peppermint Candy (Bakha Satang), dirigido em 2000 por um de seus cineastas mais talentosos, Chand-dong Lee. No caso, é particularmente apropriado falar em viagem, já que a imagem de um trem avançando pela estrada de ferro (em tomada “subjetiva”) funciona como elemento de ligação entre os sucessivos flashbacks que compõem a narrativa.
As primeiras tomadas mostram um homem de 30 e poucos anos, de terno e visivelmente bêbado, dançando e agindo de maneira descontrolada numa festa de encontro de sua turma de escola de 20 anos atrás. Ele acaba indo parar numa ponte, por onde passa a linha férrea, e, apesar das tentativas de dissuadi-lo, se suicida jogando-se contra o trem.
A partir daí, o filme conta sua história, abordando, em ordem cronológica inversa, diversos períodos de sua vida: da miserável condição em que vinha vivendo após se separar da mulher e ser traído pelo sócio ao reencontro com a ex-esposa prestes a morrer num hospital; do seu violento período como policial, que coincide com o momento em que a rotina se instala ao casamento, à crise que o leva a abandonar a profissão, a mulher e a filha; do serviço militar ao momento em que conheceu sua futura mulher, e assim sucessivamente. O final, que não revelarei para preservar o interesse, é genial, instaura uma profunda reflexão existencial, e reafirma Chand-dong Lee como um mestre da narrativa.