sábado, novembro 11, 2006

O fenômeno Shah Rukh Khan


Produtos do ramo mais bem-sucedido do cinema indiano em termos comerciais, os filmes abrigados sob o rótulo “Bolywood”, no mais das vezes produções de grande orçamento, obedecem a um sistema industrial altamente profissionalizado. Dos roteiristas aos técnicos no estúdio, da figurinista ao diretor de arte responsável pelos multicoloridos padrões cromáticos, dos coreógrafos aos cantores que dublam os astros nos diversos números musicais, todo o sistema produtivo trabalha em série e de modo praticamente ininterrupto, a realização de um filme sucedendo a de outro.

A cereja do bolo desse esquema é, claro, o star-system indiano, já que no país, ainda mais do que em Hollywood, é o elenco – sobretudo o protagonista masculino – o principal chamariz de público para os filmes.

A atual estrela inconteste das telas indianas é o ator Shah Rukh Khan (foto), 41 anos, que sucedeu o grande ídolo dos anos 70 Amitabh Bachchan (acerca do qual publicaremos um post em breve). Essa mudança significou uma revolução nos padrões estilísticos e temáticos concernentes ao protagonista.

O título com o qual a imprensa ocidental freqüentemente se refere a Shah Rukh Khan – “O Tom Cruise indiano” – está longe de dar conta do complexo fenômeno que ele representa. Para começar, ao contrário do atorzinho hollywoodiano, ele não pertence à classe social/etnia dominante, e sim ao islamismo, identificado na Índia com as camadas mais pobres da população. O fato de ter atingido o topo do estrelato a partir dessa origem, subvertendo a tradição em um país rigidamente estratificado em termos sócio-econômicos, fez dele um modelo para vastos segmentos da juventude indiana.

Um dos traços distintivos de seu estilo de interpretação – e talvez o grande segredo de seu sucesso –, é a entonação auto-irônica com que dota suas personagens, meta-referência que acrescenta inteligência e ironia às suas performances. Embora não seja bom dançarino - requisito importante para um astro indiano – Shah Rukh Khan tem uma expressão corporal ágil e uma sensualidade natural, que, com o auxílio do humor, o permitem desvencilhar-se dos números de dança com relativa destreza.

A encarnação do galanteador maroto, brincalhão e doce como um menino, que ao se ver obrigado a "crescer" e enfrentar as adversidades revela-se possuidor de um grande caráter, tornou-se uma espécie de marca registrada dele e um de seus tipos mais marcantes, recorrentes. No últimos anos, seu talento e carisma únicos fizeram dele um fenômeno cult internacional.

Algumas de suas melhores atuações estão em papéis que, ilustrando uma dinâmica social intensificada pela globalização, representa um indiano que foi ganhar a vida no exterior, e agora volta para o país e enfrenta o choque do reencontro com suas raízes – tema de Pardes (Subhash Ghai, 1997) e do excelente We, the People (Swades, Ashutosh Gowariker, 2004). Para entender o fenômeno Bollywood é preciso decifrar o fenônemo Shah Rukh Khan.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Comédia Camp Alucinada


Imagine uma comédia besteirol que promove um cruzamento de Star Wars e A Noite dos Mortos-Vivos e inclui colegiais em uniforme enfentando, a machadadas, um bando de zumbis enlouquecidos. Imaginou? Pois isso é só o começo de Sar Wars (Khun krabii hiiro, Taweewat Whntha, Tailândia, 2004).
O filme, forte candidato a clássico camp, vai se tornando mais e mais hilário ao longo da narrativa, que não se prende a nenhum modelito batido (e tira uma onda com Quentin Tarantino, incluindo de um anime erótico que não tem nada a ver com o resto do filme).
O desempenho dos atores, claro, deixa muito a desejar, mas isso só torna o espetáculo ainda mais hilário - para o que contribui consideravelmente a qualidade dos efeitos especiais (não tanto por serem ruins tecnicamente, mas justamente por aspirarem a um nível alto, ao invés de incorporar a precariedade técnica como estética).
Mas, apesar de todo o lado trash, o que faz de Sar Wars um filme que vale a pena ver é a ousadia visual - bem gráfica - e um roteiro extremamente criativo, que dá de dez em todas as comédias que Hollwood produziu na última década. Pra aqueles dias que você tá afim de morrer de rir.camp

segunda-feira, novembro 06, 2006

Policial Cult Coreano


Filmado em super-16mm e exibido em 35mm (mesmo processo adotado por Walter Salles e Daniela Thomas em Terra Estrangeira (1996), e que produz uma granulação da imagem) o filme coreano The City of Violence (Jjakpae, Seung-wan, 2005) vem se tornando objeto de culto internacional nos últimos meses,
Ao contrário do padrão da maioria dos filmes policiais coreanos contemporâneos, que costumam dosar o ritmo através da contraposição de contemplativos diálogos e vertiginosas seqüencias de ação, o filme filia-se à escola policial dos anos 70: ação constante, humor curto e grosso, diálogos cortantes.
O resultado é um daqueles filmes que fazem a cabeça de Quentin Tarantino e o levam a apresentar ao resto do mundo, como se fosse a maior novidade cinematográfica do planeta, entre outros produtos de inspiração asiática, seqüências de luta plásticas e altamente coreografadas como as de Kill Bill 1 (2003). Mas se o leitor prefere conhecer a categoria das originais, confira aquelas protagonizadas pelo mestre coreano das artes marciais Jeong Du-hong em The City of Violence. São de outro nível.

domingo, novembro 05, 2006

Ichi the Killer


O mais cultuado dos filmes de Miike Takashi, Ichi the Killer (Koroshiya 1, 2001) é uma adaptação – menos violenta, acredite - do mangá homônimo publicado meses antes por Yamamoto Hideo (o desenhista, não o famoso diretor, que aliás participa do filme como ator). Primeira parceria de Miike com o roteirista Satô Sakichi (com quem viria a trabalhar novamente em Gozu (Gokudô kyôfu dai-gekijô: Gozu, 2003)), o filme marca, ao mesmo tempo, o paroxismo de seu estilo visual-narrativo e, ao lado de Audition (Ôdishon, 1999), sua mais elaborada e prenhe de significações criação cinematográfica.

Após a vertiginosa seqüência de abertura – câmera subjetiva de um ciclista pelas ruas de Tóquio, estabelecendo um padrão visual composto de profusão de zooms, planos-seqüência e movimentos acelerados de câmera – o filme mergulha, através de uma narrativa que constantemente avança e recua no tempo, numa trama passada no submundo de gangues e das redes de prostituição.

Através de hipnose, o chefe da yakuza Jijii (Tsukamoto Shinya) implantou memórias no inseguro e masoquista Ichi (Omori Nao) que o fazem assassinar prostitutas do bordel chefiado pela bela Karen (Sun Alien), controlado pelo ramo rival.

Kakihara (Asano Tadanobu, num dos papéis decisivos para sua projeção internacional), um japonês albino que usa um piercing-alfinete em cada canto da boca e tem o rosto coberto de cicatrizes, é um membro da tal ala rival, disposto a vingar a morte de seu chefe, Anjo, que é assassinado ao lado da primeira vítima. A personagem de Asano é introduzida na narrativa, em flashforward, na casa em que ocoreu a matança (encenada com o grafismo típico de Miike, teto respingando sangue, tripas ainda “vivas” se contorcendo pelo chão...).

Na seqüência mais famosa do filme, ele tortura outro membro da organização - que é mantido suspenso por ganchos que perfuram a pele das costas - utilizando-se de agulhas espetadas no rosto e de óleo fervendo... Com as demais cenas de tortura, o sadismo com que são tratadas as prostitutas e as sequências da morte delas – um corte profundo no pescoço que provoca esguichos de sangue -, o filme resulta num espetáculo cinematogáfico de difícil digestão para públicos mais sensíveis.

A trama é freqüentemente mediada por aparatos de vigilância, como circuitos internos de segurança - cujas imagens são “reproduzidas” através de vídeo de baixa definição -, e perpassada por um elaborado desenho de som, em que se destaca a trilha sonora, formada por uma percussão hipnótica acrescida de vocais e por eventuais incursões ao pop/rock japonês.

O filme remete, assim, ao crescente controle social exercido pela tecnologia, e prefigura nosso atual presente histórico, com a tortura incorporada à temática cotidiana (e, a que ponto chegamos, método de interrogatório aprovado em parlamentos de países ditos democráticos). No entanto, enganam-se os que pensam que Miike, através de seu aparente amoralismo, apologiza ou endossa a violência. Ao contrário: a exemplo de Nelson Rodrigues - sempre atacado pela alegada permissividade de suas peças -, o diretor japonês, como vem seguidamente demonstrando sua obra, é um moralista, perplexo ante a conteporaneidade e saudoso de um passado idílico (ver a série DOA). Isso é evidenciado, no filme, pelo fato de que, ao final, o único sobrevivente é o menino Takeshi, testemunha perplexa de toda a sanguinolência e herdeiro daquele presente desesperançado.

sábado, novembro 04, 2006

Western Pós-moderno Tailandês



Pastiche do western e do melodrama (este um gênero central das tradições literárias tailandesas), Tears of the Black Tiger (Fa Talai Jone), dirigido por Wisit Sasanatieng em 2000, foi um grande sucesso de público e crítica no país. O filme conseguiu atrair, ao mesmo tempo, o público fiel às comédias populares e uma audiência com um gosto cinematográfico mais cosmopolita.

As razões para esse duplo sucesso talvez posam ser explicadas pelo fato de o filme “funcionar” muito bem como uma comédia popular – com direito à adrenalina do western e às lágrimas do melodrama - e, ao mesmo tempo, parodiar esses gêneros e a própria narativa.

A história, passada no final do século XIX, diz respeito a um triângulo amoroso entre uma bela donzela, o oficial a quem está prometida, e o bandido por quem, claro, está apaixonada. A direção de arte, detalhista, é um espetáculo à parte, registrado por uma fotografia marcada por baixas luzes e saturação cromática, que acentua a ênfase dramática. Os desempenho dos atores, infelizmente, não está à altura do padrão técnico-narrativo do filme, que foi selecionado para o Festival de Cannes em 2001.

sexta-feira, novembro 03, 2006

O Arrebatador Cinema da Índia



A imagem do cinema indiano no Ocidente esteve associada, por um longo período, à figura de Satyajit Ray (1921-1992) e, nas últimos décadas, aos filmes produzidos por “Bollywood” (o B vem de Bombay, cidade que desde 1995 passou a chamar-se oficialmente Mumbaim, e único centro produtor de cinema no mundo a superar Hollywood, ente outros quesitos, em número de produções/ano).

Mas, com todo respeito a um dos grandes mestres do cinema e à exuberância multicolorida de “Bollywood”, o cinema indiano vai muito além dessas duas imagens.

O país contra com três grandes centros produtores – Mumbaim, Calcutá e Madras –, que lançam, anualmente, uma média de quase mil filmes. A maioria é falada em Hindi, mas há uma considerável produção em Tamil, Telugu e em Malayalam, e algumas dezenas de títulos falados em Bengali, Kannada, Gurajati e em Marathi. Quase todos os 21 idiomas/dialetos falados no país são contemplados com a produção de ao menos um filme por ano.

Cerca de trinta milhões de indianos vão ao cinema diariamente (aproximadamente 3% da população do país) e, em 2005, 94% das receitas de bilheteria disseram respeito à produção nacional. Além de hegemônico internamente, o cinema indiano tem mercado cativo no sudeste asiático, no Oriente Médio e em boa parte da África. Durante décadas objeto de culto restrito às comunidades indianas no exterior, vive hoje um processo de popularização no Ocidente – fenômeno que mereceu uma extensa reportagem no diário francês Le Monde em agosto último.

A presença marcante da cultura popular indiana – milenar ou contemporânea -, combinada ao volume de produção, gera um cinema extremamente rico em sua diversidade, com uma forte tradição em termos de documentário, duas grandes escolas ficcionais, características regionais distintas e crescente experimentalismo. Vale a pena conhecer melhor essa filmografia vibante, que envolve o espectador, seja através do apelo popular produzido pela mistura de gêneros, canções e cores de sua produção mainstream, pela sinceridade e agudeza dos seus filmes de “temática social”, ou pelo rigor e personalidade de seu “cinema de autor”.

Este blog abordará, ao menos uma vez por semana, esse cinema infelizmente tão pouco divulgado no Brasil.

quinta-feira, novembro 02, 2006

A Dura Vida dos Pixotes Indianos


Um dos clássicos esquecidos do cinema indiano, Boot Polish (Prakash Arora, 1954) retrata a trajetória de um casal de crianças – Belu, com 7 anos e Bhola, com 10 – que se vêem órfãs e são entregues à prostituta Kamala, uma tia que os brutaliza e explora financeiramente.

Estimulados pela carismático John Chacha (visto na parte superior da foto), um escroque que busca em Cristo a força para regenerar-se, eles passam a procurar uma profissão, na tentativa de deixar de pedir esmola (atividade que é classificada pelo filme como moralmente condenável). No entanto, as vertiginosas inversões dramáticas típicas de uma certa tradição cinematográfica indiana imporão um longo e penoso percurso a separá-los da obtenção da dignidade pessoal e do reencontro com o carinho maternal.

Fiel à narrativa clássica, o filme utiliza com economia dramática a movimentação de câmera e vale-se de forma recurrente da música – na trilha ou nos números de dança – para enfatizar o estado de espírito das personagens. Uma das tradições mais fortes do cinema mainstream indiano, a narrativa promove uma mistura de gêneros cinematográficos, a comédia e o melodrama funcionado como pêndulos que asseguram o equilíbrio do drama central.

Passado em Bombaim (atual Mumbaim) e parcialmente filmado em locação, o filme retrata a condição de vida nas favelas da cidade e leva ao limite permitido pelo tipo de espetáculo cinematográfico em questão a ênfase dada à falta de perspectivas sociais das classes desvalidas. A intensidade dramática de seus momentos finais equipara-se à de clássicos do melodrama latino e arranca lágrimas dos espectadores mais sensíveis. Um clássico para ver e rever.